A Coleção

Magnólia Costa

2009

 

 Os motivos que levam alguém a colecionar são tão numerosos quanto os são os colecionadores. Há, porém, um motivo comum a todos: o desejo de possuir, ordenar e preservar bens. Esse desejo se realiza com a contemplação da coleção, que é tanto mais admirável quanto mais completa. Se a completude é causa de admiração, o que pode motivar alguém a formar uma coleção que não se pode completar?

Nesta mostra, Pazé traz uma coleção, não de obras de arte, mas de imagens de pinturas célebres que, destituídas da qualidade de serem bens raros e únicos, ganham a efemeridade do adesivo vinílico em que são impressas e vistas no breve lapso de tempo desta exposição. A efemeridade dessas imagens têm algo de virtual, apresentando-se ao olhar em evidente alusão à imagem especular. Nenhum espelho real reflete a imagem desta coleção, no entanto, ela se mostra duplicada em paredes opostas da galeria, e, em sua duplicidade, esvai-se o sentido do que deveria ser observado diretamente, em correspondência com o visto nas pinturas reais, e do que se mostra revertido em relação a elas.

Na Coleção de Pazé, a duplicidade não provém somente da oposição entre real e virtual, mas também da existente entre original e cópia. Das imagens vistas na Coleção, a do Arquiduque Leopoldo Guilherme em sua galeria de pinturas em Bruxelas (1647) de David Teniers o Moço, é eleita como princípio de ordenação espacial, deixando suas modestas dimensões de pintura de cavalete para dominar as superfícies mais extensas do espaço expositivo. A galeria do arquiduque é ampliada e multiplicada em imagens de salas formadas por paredes, portas e corredores irreais que se sucedem ao infinito. Imagens escolhidas por Pazé substituem as que figuram no original de Teniers, elas próprias cópias de pinturas célebres. O naturalismo preciosista dessas imagens intensifica a sensação de vertigem, exatamente como se dá na descrição da galeria imaginária de Georges Perec em A coleção particular (1979).

Outro jogo duplo se forma em torno de um ponto comum a todas as imagens escolhidas por Pazé: há nelas pelo menos uma figura que mira fixamente o observador. Vê-se a Coleção, a Coleção olha o espectador. A duplicidade lança a incerteza: é o colecionador que possui, ordena e preserva ou seria ele uma presa vigiada ao contemplar a Coleção?


Translated Giancarlo Hannud

The Collection

Magnólia Costa

2009

 

The reasons that lead one to collect are as many as there are collectors. There is, nevertheless, a reason that is common to all: the desire to possess, order and preserve goods. This desire is fulfilled by the collection’s contemplation, which is all the more admirable the more it is complete. If completeness is a cause for admiration, what is it that motivates someone to form a collection that cannot be completed?

In this show, Pazé brings together a collection not of works of art, but of images of famous paintings which, divested of their quality of rare and unique goods, gain the transience of the vinyl adhesive in which they are printed on and seen during the brief lapse of time of this exhibition. These images’ transience has something of the virtual, presenting themselves to the viewer in an evident allusion to the specular image. No true mirror reflects this collection’s image, however, it shows itself doubled on the gallery’s facing walls, and, in its duplicity, the meaning of what should be directly observed vanishes, in correspondence with what is seen in the real paintings, and of what is shown in reverse and in relation to them.  

In Pazé’s Collection duplicity comes not only from the opposition between real and virtual but also from the one existing between the original and its copy. Amongst the images seen in Collection, that of David Teniers the Younger’s Archduke Leopold Wilhelm in his Painting Gallery in Brussels (1647) is elected as the ground rule for the spatial ordering of the exhibition, departing from its small dimensions as an easel painting in order to dominate the wider surfaces of the exhibitory space. The Archduke’s gallery is enlarged and multiplied into images of rooms made up of mock walls, doors and corridors that endlessly succeed one another. Images chosen by Pazé replace the ones featured in Teniers’s original, themselves copies of well-known paintings. The precious naturalism of these images intensifies the feeling of vertigo, in the same manner as in George Perec’s description of the imaginary gallery in his A Gallery Portrait (1979).

Another double game is shaped around a point common to all of the images chosen by Pazé: in them there is always at least one figure that gazes directly at the viewer.  One views Collection, and Collection observes the viewer. This duplicity sets in motion the doubt: is it the collector who possesses, orders and preserves, or could he be an observed prey whilst contemplating Collection?


 

Jogo de cartas marcadas

Angélica de Moraes

2005

 

“A Rainha ficou rubra de fúria, e depois de fuzilá-la com os olhos por um momento, como uma fera selvagem, gritou: “Cortem-lhe a cabeça! Cortem...” Alice: Edição Comentada, de Lewis Carroll, com notas de Martin Gardner. Ed. Jorge Zahar, 2002.

 

       Na manhã de 20 de janeiro de 2002, um domingo, o corpo do prefeito de Santo André, Celso Daniel (PT), foi encontrado na Estrada da Cachoeira, altura do quilômetro 328 da Rodovia Régis Bittencourt, na Grande São Paulo. O Instituto Médico Legal constatou que o prefeito foi executado no sábado, por volta das 22h, com oito disparos, três deles no rosto, de uma pistola de 9mm. As cápsulas encontradas no chão comprovaram nove tiros desferidos.

      Ao ingressarmos nesta exposição, nosso olhar é atraído, ao fundo, pela foto de uma estrada de terra margeada por densa vegetação, de aparência bucólica. É a estrada onde o corpo de Celso Daniel foi encontrado. Um tabuleiro de jogo nos leva até lá. Pelas dimensões propostas, cabemos inteiros dentro de cada retângulo dele. Somos apenas peças do jogo? Fique atento. Somos alvos móveis, sob a mira de um pelotão de fuzilamento. Eles apenas parecem inofensivos soldadinhos de chumbo. Daqueles mesmos que nos ensinam jogos de guerra quando crianças e que a artilharia ruidosa dos games eletrônicos tomou o lugar.

      Estamos acostumamos a identificar o artista pela sedutora reflexão sobre luz e cor, filtradas do acúmulo de delicadas arquiteturas de canudos, dentro de caixas transparentes. Se, naquelas peças, Pazé nos faz notar o pensamento pictórico migrando dos meios tradicionais para outros formas de expressão – o que chamo de pintura reencarnada ou pintura expandida – nesta atual produção a translucidez pretendida é de outra natureza.

     Pesquisa divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que, entre 1980 e 2000, a taxa de homicídios no país cresceu 130%, com um total de 600 mil brasileiros mortos, o que faz uma média de 30 mil pessoas assassinadas por ano. A guerra do Iraque, em um ano, registrou cerca de 10 mil vítimas. No Brasil, em suposta paz, mata-se três vezes mais. Portanto, o morticínio mais eficaz da atualidade está aqui mesmo, a nossa volta. A violência e seu cortejo de reflexos é o tema desta exposição.

     O artista ancora o segundo momento desta mostra, na sala superior da galeria, com desenhos labirínticos sobre ampliações fotográficas de cartas de baralho. São apropriações de pinturas corporais dos índios Kadiwéu guaicurus, tribo que, conforme relata Lévy-Strauss em Tristes Trópicos (Ed.Martins Fontes, 1975), usava túnicas de couro de dobras largas e rígidas, decoradas a preto e vermelho com motivos em forma de paus, copas, ouros e espadas. Os índios cavaleiros poderiam ser cartas-soldados saídas das páginas de Lewis Carroll. Os Kadiwéu tinham o costume de jogar bola com cabeças decepadas aos inimigos. O labirinto (Leão, Lucia; A Estética do Labirinto, Ed. Anhembi Morumbi, 2002) é “imagem de pesadelos e desafios insolúveis (...) A obra que o arquiteto Dédalo projetou para dar segurança, transforma-se em sua própria clausura (...) Fala-se do labirinto para se referir à opressão”. 

      Pazé associa nossos antepassados indígenas aos personagens centrais da trama de Alice no País das Maravilhas: a rainha, o rei e o valete (carrasco executor das ordens de decapitação), secundados pelas cartas Cinco e Sete de ouros. Estas cartas, conta Carroll, pintam de vermelho uma roseira branca, para que a Rainha de Copas não descubra o erro em seu jardim e faça rolar as cabeças dos que querem encobrir a realidade com tinta. Nestas latitudes tropicais, o risco (e a solução) está em iluminar o que a violência esconde.

                                                                                                   Angélica de Moraes

 

A Game of Marked Cards

Angélica de Moraes

2005

The Queen turned crimson with fury, and, after glaring at her for a moment like a wild beast, screamed :`Off with her head! Off--' Alice in Wonderland, by Lewis Carroll, with notes by Martin Gardner. Ed. Jorge Zahar, 2002

 

On Sunday morning, January 20, 2002, the body of the mayor from Santo André, Celso Daniel (PT) was found on Cachoeira Road, kilometer 328 of the Régis Bittencourt Highway in Greater São Paulo.  The Institute of Legal Medicine reported that the mayor had been killed on Saturday around 9 p.m. by eight shots: three of which were fired into his face by a 9mm pistol.  Empty shells found on the ground prove that nine shots had been fired. 

Upon entering this exhibit, our eyes are drawn toward the back of the room by a photograph of a dirt road surrounded by dense bucolic vegetation,  It is the road where the body of Celso Daniel was found.  A game board takes us there.  Through purposeful dimensions, we fit completely into each of its rectangles.  Are we simply pieces of a board game?  Be careful.  We are moving targets sighted by a firing squad.  They only look like harmless tin soldiers.  The same tin soldiers we used in war games as children replaced today by the noisy electronic artillery of video games..   

We are used to identifying the artist by the seducing reflections of light and color, filtered through the accumulation of the delicate architecture of drinking straws inside transparent boxes.  If, in those pieces, Pazé makes us notice pictorial thought migrating through traditional means to other forms of expression – what I call reincarnated painting or expanded painting -  in this current production, the intended translucence is of another nature.   

Reasearch by the Brazilian Geographical and Statistical Institute (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)) shows that between 1980 and the year 2000, total homicides in the country grew 13%, amounting to 600,000 dead Brazilians or an average of 30,000 people murdered per year.  The Iraq war claimed approximately 10,000 victims in one year.  In Brazil, supposedly in peace, there are three times more killings.  Therefore, the most efficient “morticide” today is right here in Brazil, all around us.  Violence is its retinue of reflections and the theme of this exhibit.

 

The artist anchors the second moment of this exhibit in the gallery upstairs with labyrinthine drawings over photographic amplifications of playing cards. 
They are appropriations of corporal paintings of the Kadiwéu Guaicuru Indians, a tribe that according to Levy-Strauss in Tristes Trópicos (Sad Tropics) (Ed. Martins Fontes, 1975) wore leather tunics with wide rigid folds decorated in black and read with motifs of spades, hearts, diamonds and clubs.  The Indian horsemen could be the solder cards from the pages of Lewis Carroll’s book.  The Kadiwéu used to play ball with the decapitated heads of their enemies.  The labyrinth (Leão, Lucia; A Estética do Labirinto, Ed. Anhembi Morumbi, 2002) is “the image of nightmares and unsolvable challenges (...) The work projected by the architect, Dédalo, for security, becomes his own claustral confinement (...)  One speaks of a labyrinth to refer to oppression”. 

Pazé associates our indigenous ancestors to the central characters in the Alice in Wonderland plot:: the queen, the king and the jack (the cruel executioner who gives the order for decapitation), followed by the five and seven of diamond cards. These cards, says Carroll, paint the white roses red so the Queen of Hearts won’t discover the mistake in her garden and make the heads roll of those who try to hide this reality by using paint to cover it up.  In our tropical latitudes, the risk (and solution) is in bringing to light what violence hides.

Angélica de Moraes


 

Cinzas do Paraíso

Lisette Lagnado

2002

 

Muitas coisas chamam a atenção quando nós nos aproximamos desse trabalho de Pazé. Mas talvez o que mais impressione é que fomos enganados tanto por nossa percepção como pela realidade. O que vemos não é o que é. A cor não é cinza. A superfície não é chapada. Parece ter havido uma explosão. Que já passou. Deixou como vestígio uma imagem vaporosa. Nenhum tempo que possamos lhe dedicar, observando-a, por mais intenso que seja, pode nos restituir o alvoroço dos passos que nos levam a chegar mais perto. Pazé nos exige esse mínimo e intolerável, ter força própria para andar desconfiando das aparências.

 

Estamos no campo da discussão da herança cultural da pintura. Muitos já passaram por aqui, impressionismo, abstração, optical art, o monocromo. O trabalho se comporta como uma paisagem plácida que geralmente só olhamos do alto de uma distância. O horizonte lá está, entre fumaça e bolores, banhando na variação sutil de nove tons.

 

Plageando uma expressão popular, tudo que se observa através de um microscópio escancara sua loucura. De perto, perdemos o contorno do elemento isolado. São seis caixas de acrílico com trinta e três centímetros de profundidade. Altura:duzentos e quarenta. Dentro delas, uma multidão de canudos medindo vinte e cinco centímetros de comprimento. Há portanto um espaço “entre” sobrando, ou faltando, tanto faz – oito centímetros. Vão necessário para que Pazé enfie a mão nessa matéria solta e desconexa. Um canudo é, para nosso corpo débil, um condutor de ar e de líquido. Milhares de canudos reunidos são uma colméia de filetes de luz formando um halo de energia, varrendo o espaço em ondulações rítmicas. É como se fosse inventado, hoje, um aparelho óptico que emite um milhão e duzentos mil pixels.

 

Translated Joyce Bloem


Greys from Paradise

Lisette Lagnado

2002


Many things call our attention as we address this work of Pazé. Perhaps what impresses us most is that were fooled as much by our perception as by reality. What we see is not what is. The color is not grey. The surface is not plane. It looks as though there had been as explosion.Already passed. It left vestiges of vaporous image. Whatever time we can dedicate to observing it, as intense as it may be, could give us back to the turmoil of steps that moved us closer and closer. Pazé asks the minimum and intolerable from us: the will to move forward distrusting appearances.

 

We are in the area of discussion of the cultural inheritance of painting. There were many before us; impressionism, abstraction, optical art and monochrome. Pazé´s work evokes the placid scene we usually see from the height of distance. The horizon is there among the smoke and mold bathed in the subtle variation of nine tones.

 

Borrowing a popular expression, everything one sees through a microscope exposes its madness. Looking closely, we lose the contour of the isolated element. There are six boxes of acrylic paint, thirty-three centimeters deep, and two hundred and forty high. Inside, there are innumerable straws twenty-five centimeters long. There is, therefore, a space “in-between” excess and lack. May as well be eight centimeters less: the space necessary for Pazé put his hands on the loose and disconnected material. A straw is to our feeble body, a conductor of air and liquid. Thousands of straws are a hive of rays of light forming a halo of energy sweeping the space in rhythmic waves. It is as though a optic device, emitting one million two hundred thousand pixels, had been invented today.